No Rio Grande do Sul, a 100 quilômetros de Porto Alegre, fica Walachai, um povoado de origem alemã que sempre viveu à margem. Na pequena comunidade rural, localizada na Serra Gaúcha, as pessoas falam um dialeto alemão chamado Hunsrückisch – também conhecido como “hunsriqueano” – e ainda vivem como se vivia cem anos atrás. Não por acaso, Walachai quer dizer “lugar distante, onde o tempo parou” em alemão antigo, expressão que faz jus ao seu clima bucólico.
O dialeto hunsriqueano, com origem na região do Hunsrück, no sudoeste da Alemanha, é uma das línguas minoritárias mais faladas no Brasil. Por “língua minoritária” entenda-se o idioma de uma minoria étnica situada numa dada região. O dialeto hunsriqueano representa uma das trinta línguas trazidas ao país por imigrantes, ao lado de aproximadamente 180 línguas indígenas existentes no Brasil. Embora não haja um levantamento preciso sobre o número de pessoas que falam o dialeto, sabe-se que estão espalhados em 38 localidades, a maioria no sul do país – Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – onde os primeiros alemães se concentraram, no início do século 19.
Arcaico
O distrito de Walachai ficou conhecido quando um professor local, João Benno Wendling, decidiu registrar a história de seu povoado em livro, ao qual teve acesso a diretora de cinema Rejane Zilles, natural da cidade.Foi o bastante para que ela resolvesse transformá-lo no documentário O Livro de Walachai (2007), mais tarde retomado no longa-metragem Walachai (2009), exibido na 33ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, em outubro passado. Wendling dedicou toda sua vida à alfabetização em português das crianças do distrito, e suas anotações, mais de 400 páginas escritas à mão, formam um relato minucioso da cultura e dos costumes locais.– Fiquei comovida com a dedicação abnegada deste homem, que durante nove anos, sem nenhum auxílio, se dedicou a registrar a história do nosso povoado. Percebi que tinha ali um ótimo roteiro, mas o tempo urgia, pois o professor na época já tinha 82 anos e a saúde debilitada – conta Rejane.O hunsriqueano é uma espécie de alemão arcaico, recheado de expressões que não encontram mais equivalência na língua alemã atual. Esse dialeto vem sendo transmitido de geração em geração desde a chegada dos primeiros imigrantes alemães, há mais de 180 anos. Por ser essencialmente falado, o hunsriqueano praticado no Brasil não dispõe de uma escrita sistematizada, valendo-se, normalmente, do chamado alemão-padrão (Hochdeutsch) e do português para o registro.
Identidade
O professor Cléo Altenhofen, do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), afirma que são frequentes e notórios os juízos de valor depreciativos sobre as línguas minoritárias, em especial aquelas orais, caso do hunsriqueano. – Essa condição de dialeto, situado abaixo da norma padrão, e de língua marginal submissa à língua oficial, o português, aliada à posição social dos imigrantes, tem dado margem a depreciações do Hunsrückisch, incluindo atributos como verlorene Sproch ["língua perdida"], vebrochne Deitsch ["alemão quebrado"] ou Heckedeitsch ["alemão do mato"] – diz Altenhofen.
O professor destaca o valor social do dialeto. – Uma língua significa muito mais do que uma lista de palavras ou de regras gramaticais. É também um sinal de identidade – justifica.
Empréstimos
A diretora Rejane Zilles sentiu na pele, durante uma viagem pela Alemanha, o peso da identidade e o “anacronismo” do dialeto de Hunsrück em relação ao alemão culto.– Cheguei a Berlim falando apenas o dialeto. Eu me sentia quase um “objeto antropológico”. As pessoas tinham enorme curiosidade para saber de onde vinha esse alemão que eu falava e me diziam ser curioso ouvir uma pessoa jovem usando expressões tão antigas – diz ela. Essa cultura própria, independente da matriz alemã, se evidencia nas influências do português sobre o hunsriqueano. Muitas palavras foram tomadas de empréstimo pelo dialeto devido à falta de conhecimento de suas correspondentes em alemão-padrão. Bom exemplo é “televisão”, que não fora inventada à época da imigração. Foi “descoberta” mais tarde só pelo nome que lhe deram aqui no Brasil, ignorando que na Alemanha o aparelho chamava-se Fernseher. Há exemplos de hibridismos: Mais (milho) é de origem alemã, mas não era usada pelo dialeto. Em vez do alemão-padrão Maismehl (farinha de milho), o hunsriqueano criou o termo Milhomel. E de substrato: “guri”, “menino” para os gaúchos, vai para o plural hunsriqueano com a flexão -e do paradigma alemão: Gurie (outros exemplos no quadro abaixo).
Hunsriqueano | Português | Alemão-padrão |
Feschón | Feijão | Bohnen |
Fakón | Facão | Buschmesser |
Karét | Carreta | Lastwagen |
Amesche | Nêspera | - |
Past | Pasto | Weide |
Makák | Macaco | Affe |
Mule | Mula | Maultier |
Onze | Onça | Jaguar |
Schikót | Chicote | Peitsche |
Karose | Carroça | Leiterwagen |
Schuraske | Churrasco | Grill |
Kanelepaum | Caneleira | Zimtbaum |
Fonte: O hunsrückisch no Brasil: a língua como fator histórico da relação entre Brasil e Alemanha, Karen P. Spinassé (Espaço Plural, 19, 2008) |
Segregação
Regina Zilles diz que, ao rodar o documentário, queria desfazer o mito de que as comunidades alemãs optem pela segregação cultural. – Muitos acham que “esses alemães” ficam louvando a Alemanha e seus costumes, ao modo das típicas festas de Oktoberfest. É claro que há esse segmento, mas não é a realidade de Walachai, um lugar que conheço de dentro, pois nasci lá. A Alemanha de origem está muito distante para essas pessoas humildes, da qual não sabem nada e nem demonstram interesse em conhecer. Já se criou uma cultura própria e essa sim me interessa revelar – diz. Há uma real dificuldade, especialmente entre os idosos em Walachai, de falar português. Isso se deve, em parte, à política de nacionalização do Estado Novo (1937-1945). Getúlio Vargas reprimiu o ensino de alemão nas escolas. A proibição, de forma vertical e arbitrária, prejudicou o aprendizado do português, pois os alunos chegavam à escola e não entendiam o que o professor explicava. Mesmo depois de 1939, com a Campanha de Nacionalização do Ensino, o governo não tomou medidas que incorporassem os colonos alemães à cultura brasileira, e o aprendizado de toda uma geração foi afetado. Durante todo esse tempo, Walachai viveu o limbo de dois idiomas que se cruzam. (Edgard Murano, “O dialeto esquecido”, revista Língua Portuguesa n. 52, Jan/2010)
Fonte: Edgardm
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