Moradores da Serra Gaúcha tentam salvar o dialeto talian da extinção
Os adultos da família Isotton se comunicam em dialeto, mas as crianças, apesar de entenderem, resistem em falar. |
O reconhecimento da língua como Patrimônio Imaterial do país traz a esperança de que ela renasça do declínio
Por Luísa Martins
Fotos: Anderson Fetter/Agencia RBS
Ainda gritado pelos nonos e nonas mas cada vez mais ausente do repertório das crianças, o dialeto talian, falado por mais de 500 mil descendentes da imigração italiana ao Brasil, está prestes a ser promovido ao status de idioma. No próximo dia 18, um certificado expedido pelo Ministério da Cultura (MinC) vai classificá-lo, em um movimento inédito, como Referência Cultural Brasileira —um título que sinaliza o percurso contrário ao silêncio e traz a esperança de que a língua, em declínio nas últimas décadas, se salve da morte.
A 95 quilômetros de Bento Gonçalves, Serafina Corrêa é a única cidade brasileira em que o talian é idioma co-oficial (lei municipal em vigor desde 2009). Ainda assim, a ritmada língua de erres acentuados e vogais bem pronunciadas está praticamente restrita aos ambientes domésticos. Os mais velhos falam, os adultos respondem e a gurizada, em geral, apenas entende.
— Eu tenho um pouco de vergonha de falar — confessa em português o estudante Enzo Isotton, oito anos.
Dentro de casa, ele e o irmão Guido, seis anos, conseguem acompanhar o diálogo dos pais e dos avós. Moram todos juntos e, diariamente, dividem a mesma mesa de café da manhã, em um sobrado perdido na zona rural do município, a 10 quilômetros do Centro. Já ouviram, em talian, seu Jeronimo e dona Odila, ambos com 82 anos, contarem sobre o passado de lida no campo, rezarem a novena e reclamarem de uma época em que o acesso à educação era difícil. Na hora de parlar, porém, os meninos emudecem. A mãe, Daniela Ferrari, não tem dúvidas sobre o motivo.
— No colégio, os colegas debocham, riem, fazem piada. É o que acaba os intimidando cada vez mais — diz ela, com a propriedade de quem convive com a situação todos os dias, já que dirige uma escola de Ensino Fundamental.
A palavra para isso não tem origem italiana nem brasileira. O bullying se expressa sem que as crianças sequer tenham consciência de que o Brasil não é feito só da língua portuguesa (a Unesco calcula que, em todo o país, sejam falados 210 idiomas minoritários, 70 deles estabelecidos por imigrantes). Assim, quando algum aluno diz “zeito” em vez de “jeito”, logo começa o cochicho: está errado.
Em vídeo, veja o retrato do Talian:
— Acho que é um tipo de preconceito — afirma Daniela. — Ultimamente, as pessoas têm valorizado tanto quem sabe falar duas línguas clássicas, como português e inglês, por exemplo. Por que conhecer o português e o talian é visto de uma forma diferente?
Não há resposta certa, mas existem desconfianças. A suposição da ex-pesquisadora da Universidade de Caxias do Sul (UCS) Marley Pértile, doutora em Letras e especialista em Linguística Aplicada, com ênfase na área de Bilinguismo e Línguas de Imigração, é a de que, como há o italiano oficial, o talian é frequentemente tachado de língua falsa, um “dialetão de colono”. Visão equivocada, segundo ela:
— Se você se comunica através de uma linguagem, ela é legítima.
O escritor e professor Darcy Loss Luzzatto é o autor do dicionário português-talian, uma das únicas obras disponíveis para consulta ortográfica do idioma de imigração. |
O receio em falar o talian, afirma o escritor e professor Darcy Loss Luzzatto, também pode ser um resquício da política de nacionalização implementada por Getúlio Vargas durante o Estado Novo, na década de 1940, em uma tentativa de silenciar qualquer língua que não fosse o puro português. Regiões de colonização estrangeira podiam ser secretamente inspecionadas — e não raro quem fosse flagrado conversando em talian, também chamado vêneto brasileiro, ia preso. Àquela época, Luzzatto, ao ajudar a atender um cliente do bar que o pai havia aberto na minúscula Pinto Bandeira (onde nasceu e hoje reside), ouviu:
— Ceo, dame un cichet de caciassa col fernet (Menino, me dá um traguinho de cachaça com fernet).
O homem foi levado pela polícia — uma memória latente até hoje para o escritor. Também não sai da lembrança o dia em que uma professora, na escola, disse que o talian era um dialeto de gente estúpida e ignorante.
— É aquela história: depois que o cara é massacrado, vira brigão — brinca ele, que do desrespeito à lingua-mãe fez nascer as três únicas obras da gramática taliana (Noções de Gramática, História e Cultura, Dissionàrio Talian-Portoghese e Dicionário Português-Talian) e que, toda segunda-feira, encara 100 quilômetros de estrada, ida e volta, para dar uma só aula de talian a um grupo de alunos de Serafina Corrêa, a maioria professoras do ensino básico.
A bibliografia elaborada pelo escritor foi uma das consultadas para a elaboração de um grosso relatório que, enviado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) sob a coordenação de Marley, então docente da UCS, radiografa a situação do talian no Brasil. A pesquisa realizada em 2009 aponta, por exemplo, que a perda linguística do talian de uma geração para outra pode chegar a 36% — uma queda significativa se comparada ao fim da década de 1980, em que um levantamento demonstrou perda inferior a 1%.
O documento foi a principal etapa de uma epopeia pelo reconhecimento. Começou em 2001, nove anos antes de o órgão criar o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL). Entusiasta do talian, o escritor, poeta e hoje blogueiro em Erechim Honório Tonial, 88, descobriu que existia uma coisa chamada Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Ouviu sobre isso no rádio, durante a Voz do Brasil — noticiário tornado obrigatório, ironicamente, pelo mesmo Vargas que tentou encolher a italianice dos descendentes. Então, por meio da Federação das Associações Ítalo-Brasileiras do Rio Grande do Sul (Fibra/RS), enviou um ofício ao Iphan, que acolheu o pedido e indicou o dialeto como objeto para o projeto-piloto de inventário — com um aporte de R$ 150 mil do MinC. A esperada cerimônia de condecoração será em Foz do Iguaçu (PR), dia 18, durante o Seminário Ibero-Americano de Diversidade Linguística.
Para Paulo Massolini, presidente da Fibra, a oficialização do talian como idioma brasileiro — e primeira língua de imigração a ser reconhecida Patrimônio Imaterial do Brasil — abre precedente para que, finalmente, se reformule o programa de ensino das séries escolares iniciais. Atualmente, do primeiro ao quarto ano do Ensino Fundamental, os alunos têm aulas de italiano regular.
— Que nem de longe é o que representa a nossa cultura — afirma Massolini.
É que o talian surgiu de uma mistura. No século 19, a Itália era dividida por regiões, cada uma com seu dialeto particular. Recém-chegados ao Brasil em busca de um pedaço de terra em um país novo e ainda pouco desbravado, imigrantes de várias regiões (Lombardia, Trentino-Alto Adige, Friuli-Venezia Giulia, Piemonte, Toscana, Ligúria e, principalmente, Vêneto) foram postos em convivência pelos donos das colônias. Precisavam constantemente adaptar seus múltiplos falares para que conseguissem se entender.
— Aos poucos, palavras brasileiras foram sendo inseridas no vocabulário, mas com uma sintaxe veneta — explica o professor Luzzatto.
A palavra “tamanco”, por exemplo, em italiano fala-se “zoccolo”. No talian, acabou virando “tamanchi”.
No entanto, o que Luzzatto tem como grande trunfo do talian pode ser justamente o que, para a professora Marley, é o desafio de inserir o ensino do idioma na grade curricular do ensino básico:
— El talian se lo scrive come se lo parla e se lo parla come se lo scrive (O talian se escreve como se fala e se fala como se escreve).
— E, por isso, é difícil de ensinar — aponta Marley.
O talian é uma linguagem que ainda não está sistematizada gramaticalmente. Muito porque, até a década passada, existia apenas na fala. Era, em suma, uma língua oral, com palavras que, até hoje, permitem duas ou mais pronúncias diferentes.
Está com as famílias, portanto, o poder de resgatar o talian da queda, uma vez que fora de casa quem prevalece é o português. Segundo Marley, alguns fatores favorecem o sumiço gradual do dialeto — o mais importante deles: os pais estão deixando de falar a língua com seus filhos. Algo impensável na casa dos Ziliotto, também em Serafina Corrêa.
Albino e Zelinda Ziliotto culpam a tecnologia pelo desinteresse das crianças em valorizar o talian. |
Seu Albino, aos 74 anos, não vai carregar qualquer parcela de culpa por deixar o dialeto esmorecer. Não só insiste no talian com seus quatro filhos, 13 netos e quatro bisnetos, mas também na manutenção dos costumes que herdou dos avós italianos. Cita alguns:
— L’è bisogno darghe un bon di, farghe na vìsita ai maladi, cognosser la colònia. Ghe ze gente che vien del paese che no sà gnanca cossa che sia un fogon a legna (Tem que dar bom dia, visitar os doentes, conhecer a roça. Tem gente que vem lá da cidade e não sabe nem o que é um fogão a lenha).
Ele e a mulher, Zelinda, presenças assíduas nos filós (encontros de famílias italianas, cheios de comes, bebes, cantorias e causos), tiram o sustento com a produção de queijos, salames e vinhos, entre outras iguarias tradicionais, e têm uma ideia fixa sobre quem é a verdadeira destruidora do talian: a tecnologia.
— A gente até tenta conversar com as crianças, mas depois que veio a tevê e o tal de computador, ninguém mais consegue a atenção da piazada — diz Albino, com a anuência de Zelinda.
O locutor e animador Edgar Marostica tenta ir na contramão. Palestras e programas de rádio posicionam o talian de uma maneira engraçada, mas no contexto da história dos imigrantes italianos na região.
— É uma maneira de, através de uma brincadeira, despertar as crianças para a importância da sua origem. O meu filho de dois anos entende tudo o que eu digo e já ensaia as primeiras palavras em talian — relata o humorista.
Do convívio com a avó, Simone se tornou fluente em talian, mas depois de ir para a escola, foi se aquietando: hoje, só fala o básico. |
Algo que também aconteceu com a pequena Simone Bedin, seis anos. Está sendo alfabetizada em português, mas em casa, só fala o talian.
— É que a minha nona não entende outra língua — se explica.
Os avós da nona chegaram da Itália ao Brasil na virada para o século 20. Como não foi à escola e passou boa parte da vida ajudando os parentes a cuidar de um pedacinho de terra em Guaporé (cidade da qual Serafina Corrêa fazia parte antes de se emancipar), Antonia Bedin, 81 anos, não aprendeu uma palavrinha sequer em português. Dos diálogos em talian sobre o cotidiano das lidas campeiras, fez-se uma neta fluente no idioma imigrante.
Quando entrou na escola, dois anos atrás, a menina era uma tagarela do talian, conta a professora Isabel Bazza. Foi se aquietando ao longo do tempo e, hoje, fora do convívio familiar, só fala o bê-á-bá: nome, idade, comida preferida. Às vezes, como se um botão fosse acionado dentro dela, desata a falar, normalmente após o estímulo de um questionamento feito em dialeto. Se Simone ouvir alguém perguntando, em talian, quais bichos ela tem em casa, virá a resposta rápida (e um sopro de esperança aos que querem ver o talian renascer):
– Gat, can, galina, porco, vaca, beco (Gato, cachorro, galinha, porco, vaca, cabrito).
Fonte: Zero Hora
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