Apresentação

O Forlibi surgiu da necessidade de unir as línguas brasileiras de imigração com o objetivo de instaurar um diálogo permanente entre estas comunidades linguísticas, e se propõe a ser um espaço de pesquisa, mediação e articulação política em variadas frentes para o fortalecimento das mesmas. Reunindo falantes e representantes das línguas de imigração e de instituições parceiras, tem como propósito delinear ações coletivas para a promoção das línguas nas políticas públicas em nível nacional.

domingo, 25 de janeiro de 2015

A diversidade linguística como patrimônio cultural


Foto: Marcello Casal Jr_ABr
A diversidade linguística como patrimônio cultural

Ministério da Cultura inicia, por meio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, política de reconhecimento das diferentes línguas e dialetos falados no Brasil através de processos de inventários, apoio a pesquisas, divulgação e promoção

Marcus Vinícius Carvalho Garcia

A diversidade linguística encontra-se ameaçada. Estima-se que entre um terço e metade das línguas ainda faladas no mundo estarão extintas até o ano de 2050. As consequências da extinção das línguas são diversas e irreparáveis, tanto para as comunidades locais de falantes, quanto para a humanidade. Essa percepção se encontra na Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, elaborada na cidade de Barcelona, Espanha, em 1996, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas Para Educação e Cultura (Unesco) e com a participação de representantes de comunidades linguísticas de diversas regiões do planeta. Segundo este documento, a situação de cada língua é o resultado da confluência e da interação de múltiplos fatores político-jurídicos, ideológicos e históricos, demográficos e territoriais; econômicos e sociais. Salienta que, nesse sentido, existe uma tendência unificadora por parte da maioria dos Estados em reduzir a diversidade e, assim, favorecer atitudes adversas à pluralidade cultural e ao pluralismo linguístico.


O Brasil figura entre os países de maior diversidade linguística. Estima-se que, atualmente, são faladas mais de 200 línguas. A partir dos dados levantados pelo Censo IBGE de 2010, especialistas calculam a existência de pelo menos 170 línguas ainda faladas por populações indígenas. Embora não contabilizadas pelo Censo, pesquisas na área de linguística também apontam para outras línguas historicamente “situadas” e amplamente utilizadas no Brasil, além das indígenas: línguas de imigração, de sinais, de comunidades afro-brasileiras e línguas crioulas. Esse patrimônio cultural é desconhecido ou mesmo ignorado por grande parte da população brasileira.

A historiografia do país demonstra que foi necessário considerável esforço do colonizador português em impor sua língua pátria em um território tão extenso. Trata-se de um fenômeno político e cultural relevante o fato de, na atualidade, a língua portuguesa ser a língua oficial e plenamente inteligível de norte a sul do país, apesar das especificidades e da grande diversidade dos chamados “sotaques” regionais. Esse empreendimento relacionado à imposição da língua portuguesa foi adotado enquanto uma das estratégias de dominação, ocupação e demarcação das fronteiras do território nacional, sucessivamente, em praticamente todos os períodos e regimes políticos. Da Colônia ao Império, da República ao Estado Novo e daí em diante.

Tomemos como exemplo o nheengatu, uma língua baseada no tupi antigo e que foi fruto do encontro, muitas vezes belicoso e violento, entre o colonizador e as populações indígenas da costa brasileira e de grande parte da Amazônia. Foi a língua geral de comunicação no período colonial até ser banida pelo Marquês de Pombal, a partir de 1758, caindo em pleno processo de desuso e decadência a partir de então. Foram falantes de nheengatu que nominaram uma infinidade de lugares, paisagens, acidentes geográficos, rios e até cidades. Atualmente, resta um pequeno contingente de falantes dessa língua no extremo norte do país. É utilizada como língua franca em regiões como o Alto Rio Negro, sendo inclusive fator de afirmação étnica de grupos indígenas que perderam sua língua original, como os barés, arapaços, baniwas e werekenas.

Processo similar, ou mais opulento ainda, ocorreu com a infinidade de línguas faladas na África e que foram também faladas no Brasil devido ao tráfico transatlântico. Línguas dos troncos ewe-fon, nagô-iorubá e, principalmente, as bantu foram sendo absorvidas pela língua portuguesa em processo similar ao ocorrido com as línguas indígenas, porém, deixando também sua influência principalmente na fonética, na onomástica e no vocabulário do português brasileiro.

Em outro plano, o Estado Novo, sob o comando de Getulio Vargas, também adotou medidas que geraram impactos nas línguas e culturas das famílias e comunidades imigrantes que chegaram ao Brasil em fins do século XIX. Havia a preocupação, de fundo racialista, com a manutenção da hegemonia da cultura brasileira forjada a partir dos moldes lusitanos. Temia-se a possibilidade de ebulição de movimentos separatistas, que se suspeitava poder aflorar nas colônias de imigrantes japoneses, alemães, italianos, poloneses, ucranianos, entre outras. Foi a escola o principal instrumento de imposição, onde se tornou obrigatório o ensino da língua portuguesa, desestimulando-se, ao mesmo tempo, o aprendizado e a utilização das línguas faladas pelo imigrantes.

Pode-se afirmar que é relativamente recente, do ponto de vista do Estado brasileiro, e mesmo dos Estados nacionais de modo geral, tratar a diferença étnico-cultural e linguística no campo dos direitos humanos. E isso envolve a percepção de que falar ou não determinada língua materna tem que ser uma escolha dos indivíduos, das famílias e das comunidades. Cabe, desse modo, ao Estado, tão somente garantir a liberdade dessa escolha e fomentar políticas voltadas para garantia desse direito.

Línguas como Patrimônio
Na última década tem havido grande mobilização de grupos, de organizações de falantes e de pesquisadores no sentido de associar a diversidade linguística como temática inerente a políticas de cultura, mais especificamente na esfera do chamado patrimônio imaterial. Essa mobilização motivou a elaboração do Decreto Presidencial 7.387/2010, que instituiu o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL). O INDL nasce como política interministerial envolvendo Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação (MCTI), Ministério da Educação (MEC), Ministério do Orçamento e Gestão (MPOG), Ministério da Justiça (MJ), sob coordenação atual do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), enquanto representante do Ministério da Cultura. Tem como princípios reconhecer as línguas como referência cultural brasileira, valorizando o plurilinguismo; apoiar os processos sociais e políticos que visem à promoção das línguas e de suas comunidades de falantes; pesquisa e documentação, bem como gerir um banco de conhecimentos sobre a diversidade linguística.

Um dos principais desafios para o reconhecimento das línguas minoritárias é constituir, com isso, direitos linguísticos, bem como a elaboração de estratégias que visem instrumentalizar as populações de falantes na preservação e na transmissão de seu patrimônio linguístico. Segundo Célia Corsino, diretora do Departamento do Patrimônio Imaterial/IPHAN, outro desafio é fazer do Inventário Nacional da Diversidade Linguística um instrumento includente e não discricionário, de modo que seja possível se inscrever no INDL todas as línguas faladas no Brasil, em sua plenitude ediversidade.

Importa salientar que a abordagem que o IPHAN está desenvolvendo para lidar com a complexidade desse tema é pautada na autodeclaração e na anuência dos grupos e comunidades de falantes, de modo que se aborde as línguas enquanto elementos de interesse cultural e de afirmação de identidades. Trata-se de uma estratégia voltada para a percepção do fenômeno linguístico enquanto produto de diversos fatores de ordem sociopolítica e não necessariamente como objeto de estudo de uma área acadêmica – a linguística –, que possui cânones e metodologias específicas de catalogação e classificação que nem sempre são inteligíveis para ospróprios falantes.

No entanto, acredita-se que o advento da política patrimonial da diversidade linguística chame a atenção para a necessidade de se ampliar os estudos de corte sociolinguísticos, de modo que seja possível levantar com mais exatidão quantas e quais são as línguas faladas no Brasil, bem como qual o tamanho do contingente populacional e quais as necessidades dos grupos de falantes que faz do Brasil um dos principais celeiros do plurilinguísmo na contemporaneidade.

O Vêneto Brasileiro
Outro caso relevante é o talian, uma língua forjada a partir do encontro, ocorrido em terras brasileiras, de imigrantes falantes de dialetos da região do Vêneto, na atual Itália, e que possui expressivo contingente de falantes no sul do Brasil. Atualmente, as línguas e os “modos de fazer” das comunidades que utilizam o talian são mais encontrados nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Há municípios, como Serafina Correa, no Rio Grande do Sul, em que o talian é língua oficial, assim como o português.

Estudos do Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística (GTDL) aproximam estatísticas sobre cerca de 500 mil pessoas utilizarem o idioma no Brasil, em diversas regiões. Inclusive, há estações de rádio na região Sul e no sul da região Centro-Oeste em que se transmitem programas em italian. No Rio Grande do Sul, o idioma já é patrimônio cultural imaterial oficial. Ainda sobre a disseminação da língua, em 2013 foi lançada a revista Talian Brasil (talian.net.br). Alora, ou então, como se diz em português, não há motivos para não catalogar o máximo possível a cultura trazida por essas comunidades, pois o idioma já é considerado uma língua nacional brasileira (fonte: revista Talian Brasil).

A Sobrevivência dos Pomeranos
Ocorrem no Brasil atual casos como o da língua falada pelos pomeranos, que imigraram para o Brasil devido à Segunda Guerra Mundial, e que conseguiu manter-se viva em pequenas comunidades do Rio Grande do Sul e do Espírito Santo. Essa língua, em pleno uso e transmissão no Brasil, não é mais falada na Europa Central, sua região de origem. Após a guerra, a região onde ficava Pomerode foi incorporada à Polônia pela força do regime soviético. Quanto à etnia dos pomeranos, praticamente foi extinta e os sobreviventes dispersados pela Polônia. Mas a língua permanece viva no Brasil.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Moradores tentam resgatar dialetos 'esquecidos' no sul do país

Moradores tentam resgatar dialetos 'esquecidos' no sul do país

Felipe Bächtold

Aula em escola municipal em Serafina Corrêa (RS), onde o talian
 passará a ser ensinado nos colégios - Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress.
Em uma pequena cidade do Rio Grande do Sul, funcionários da prefeitura são orientados a falar "sorasco" em vez de "churrasco" e "sinele" no lugar de "chinelo".

Por enquanto, isso ocorre uma vez ao ano: na semana em que se comemora a emancipação da cidade de 16 mil habitantes. Por enquanto.

Ameaçado de extinção, o talian, uma espécie de variação do italiano, só agora começa a ter gramática, dicionário e aulas. E a cidade de Serafina Corrêa, na serra gaúcha, virou um bastião na luta para preservar esse idioma.

Mas não é a única. Outras comunidades pelo Sul do país também se mobilizam para manter vivos dialetos europeus hoje quase restritos a regiões rurais e a idosos.

Em Serafina Corrêa, o talian virou por lei idioma "cooficial" e é incentivado das mais diferentes maneiras. Programas de rádio, uma revista e atividades culturais no idioma tentam manter vivo o interesse da população pelo dialeto, que foi trazido por imigrantes há mais de um século e se modificou devido à influência do português.

Em breve, a prefeitura irá oferecer aulas do idioma nas escolas municipais.

Os adultos que hoje moram na parte central da cidade pouco usam o dialeto. E o antigo costume de transmitir o conhecimento do idioma de geração a geração foi se perdendo nas últimas décadas.

"Eu sei falar tudo e a minha filha me cobra porque não ensinei. Hoje não tenho mais com quem falar [o talian]", diz Fátima Tecchio, 49.

Em novembro, após receber da cidade um inventário, o Ministério da Cultura reconheceu o talian como Referência Cultural Brasileira, o que deu fôlego a entusiastas.

Um deles é a servidora Solange Soccol, 59, que criou cartilhas sobre o idioma. "Sem a língua, não temos a nossa identidade, nossa tradição", afirma.

Obstáculos
O trabalho de resgate do idioma enfrenta dificuldades como a falta de um modo padronizado de escrever. Como outras línguas de colonos, o talian é ágrafo, ou seja, se desenvolveu sem escrita.

Outro obstáculo é um trauma coletivo da época da Segunda Guerra Mundial (1939-45), quando o governo de Getúlio Vargas proibiu idiomas estrangeiros em território brasileiro. Moradores idosos relatam que a perseguição bloqueou o uso no dia a dia e desestimulou o ensino.

"Quem falava em dialeto na escola ganhava castigo", diz Rosalina Vitalli, 77.

Ela vive em um distrito a 20 km do centro da cidade, onde o talian ainda é o idioma mais falado. Nesse último reduto do idioma, o português é chamado de "brasileiro".

Cássia Gollo, 27, descendente de italianos,
com a família - Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress.
Para a moradora Cássia Gollo, 24, os mais jovens têm mais vergonha de se expressar na língua dos avós. "Parece que têm um pouco de receio [de falar], que querem ser como os das cidades."

Apesar de Serafina Corrêa ser uma capital informal do talian, cidades de todo o Sul já receberam encontros anuais, promovidos por descendentes de italianos, para divulgar a língua.

A professora de ciências sociais Maria Catarina Zanini, da Universidade Federal de Santa Maria (RS), afirma que o talian surgiu no Brasil para facilitar a comunicação entre grupos vindos da Itália.

"Quando saíram de lá, os imigrantes não se entendiam: uns falavam o dialeto vêneto, outros o cremonese. Então, criaram uma língua."

'Sapato de Pau'
Desde 2010, um inventário produzido pelo governo federal busca catalogar os idiomas falados pelo país. Estima-se que existam mais de 250, a maioria indígenas.

A 100 km de Serafina Corrêa, na cidade de Westfália, o esforço é pela preservação de uma variação do alemão chamada de plattdeutsch.

O dialeto tem o apelido de "sapato de pau" devido aos tamancos que os imigrantes alemães usavam na época da colonização. Voluntários promovem programas de rádio e oficinas para o ensino da língua, que também não tem padronização escrita.

O município de Santa Maria do Herval (a 73 km de Porto Alegre) desde 2011 oferece nas escolas aulas de hunsrik, uma língua próxima do alemão falada por descendentes em vários Estados do país.

Hoje, 14 turmas até a 5ª série aprendem o dialeto. "Isso aumentou a autoestima da comunidade e a integração entre gerações. Se a língua não for mantida nas famílias, vai desaparecer", diz a professora Solange Johann, que coordena o projeto.

"Eu falo a língua que amo, banhada de tempo, trabalho e honra. A língua que os avós, hoje guardiães do céu, trouxeram como semente de vida. E foi um grande sacrifício manter por mais de cem anos. Mas aqui me dizem que ninguém entende, que estou arranhando os muros e que devo mudar a pronúncia. Que [se diz] 'eu me chamo' e não 'ni me ciamo' porque minha língua não existe. Mas eu devo, por acaso, sacrificar a minha língua para um deus sem piedade? Esses conselhos nem são esperança e são vazios de dignidade."