Apresentação

O Forlibi surgiu da necessidade de unir as línguas brasileiras de imigração com o objetivo de instaurar um diálogo permanente entre estas comunidades linguísticas, e se propõe a ser um espaço de pesquisa, mediação e articulação política em variadas frentes para o fortalecimento das mesmas. Reunindo falantes e representantes das línguas de imigração e de instituições parceiras, tem como propósito delinear ações coletivas para a promoção das línguas nas políticas públicas em nível nacional.

sábado, 8 de agosto de 2015

Os pomeranos: um povo sem Estado finca suas raízes no Brasil

Registro de imigrantes pomeranos (sem data e local). Foto: pmsmj.es.gov.br

Os pomeranos: um povo sem Estado finca suas raízes no Brasil

Por Gustavo Barreto*

Imigrantes oriundos de Pomerânia tiveram de fugir de crises e perseguições sucessivas na Europa para tentar refazer sua vida no Brasil, único país do mundo onde ainda se fala regularmente o idioma pomerano.

A imigração em algumas regiões do Brasil passa praticamente desapercebida da imprensa dos grandes centros urbanos, como é o caso dos milhares de pomeranos que vivem atualmente no Estado do Espírito Santo. A Pomerânia, que não existe mais no mapa da Europa, era uma região localizada ao norte da Polônia e da Alemanha, na costa sul do Mar Báltico, pertencente ao Sacro Império Romano-Germânico até o começo do século XIX, tornando-se posteriormente parte da Prússia e, mais tarde, terminada a Segunda Guerra Mundial, dividida entre a Polônia e a Alemanha.

Conforme registra um artigo da Revista de História da Biblioteca Nacional, seus descendentes imigraram sobretudo para colônias nos EUA, no Canadá e, principalmente, no Brasil. Os pomeranos se estabeleceram, já a partir do início da segunda metade do século XIX[1], principalmente em quatro estados brasileiros: Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Rondônia[2]. E é justamente no Espírito Santo que está uma das maiores colônias pomeranas do mundo: cerca de 140 mil pessoas[3], a maioria morando em Santa Maria do Jetibá, na região serrana capixaba, a cerca de 80 quilômetros de Vitória. Em todo o Brasil, há cerca de 300 mil pomeranos.

Atraídos com a tradicional promessa, por parte do governo imperial, de se tornarem proprietários agrícolas, os pomeranos tiveram que trabalhar nas terras de brasileiros. “Só mais tarde receberiam do imperador pequenos lotes e galinhas. Só contavam uns com os outros e não falavam o português”, diz Nilton Capaz, secretário de Turismo e Cultura de Santa Maria do Jetibá[4].

Durante a Segunda Guerra, os pomeranos foram confundidos com nazistas e duramente discriminados. “Na Vila Pavão, suas propriedades foram invadidas, livros e documentos foram destruídos e as mulheres sofreram abusos. Os agressores eram conhecidos como ”bate-paus”, uma espécie de milícia formada por civis e militares”, registra a RHBN[5]. “Era impossível falar pomerano sem ser confundido com os admiradores de Hitler”, conta Nilton. Uma dupla ignorância, esclarece o o etnolinguista Ismael Tressman, autor de um Dicionário Português-Pomerano, já que o pomerano e o alemão são línguas distintas, com os pomeranos falando um idioma cujo tronco linguístico é mais próximo do inglês e do holandês.

“Diversas campanhas pela nacionalização dos imigrantes germânicos tiveram impactos muito negativos, principalmente sobre as gerações mais jovens. As perseguições e humilhações públicas por ocasião da Segunda Guerra àqueles que tinham alguma relação com a Alemanha afetaram de maneira particular as comunidades pomeranas, principalmente quando foram forçadas a entregar seus livros para incineração e adotar o uso obrigatório da língua portuguesa nas escolas e nos templos”, diz Hilda Braun, coordenadora-geral da Associação da Cultura Alemã do Espírito Santo, em 2013, por ocasião dos 154 anos de imigração pomerana na região e do lançamento de uma tradução para o português do livro Pomeranos unter den Kreuz des Südens (Pomeranos sob o Cruzeiro do Sul)[6].

Por conta dessa perseguição, Braun sugere que sejam implementadas “ações afirmativas oficiais” para valorizar as “origens e identidade campesina deste que é um dos povos tradicionais da organização social brasileira”, como uma forma de “resgate da dívida social”. Segundo Braun, o pomerano é um idioma vivo e dinâmico, porém falado apenas no Brasil.

No dia 1o de novembro de 1936, poucos anos antes de os pomeranos – bem como os alemães, italianos e japoneses – se tornarem quase que subitamente “inimigos” por conta do preconceito linguístico, um artigo do jornal Correio Paulistano enaltece a Alemanha como um país “de belleza magnificente e incomparavel que atrae e captiva os corações”[7]. Em um trecho, registra o jornal paulista (com grifos meus): “A leste do [rio] Elba, no Mecklenburgo e na Pomerania, habitavam os ostrogodos, vandalos, godos e burgundos, que tinham emigrado no seculo III para as bandas do oeste em busca de terras ferteis”. E continua: “Do seculo VI até os seculos X e XII estes povos voltaram a atravessar o Elba, expulsando pouco a pouco as tribus eslavas – obotritas e sorabes, pomeranos e polacos”.

Artigo de página inteira do jornal Correio Paulistano, no dia 1o de novembro de 1936, registra os antepassados dos pomeranos. Imagem: reprodução

A descrição da Alemanha como um verdadeiro paraíso na Terra, realizada provavelmente por um divulgador do país no Brasil – assina o artigo Ludwig Kapeller – tem uma curiosa descrição dos alemães de uma determinada área do país: “Os habitantes são tão simples como toda a paizagem da ilha [no Mar Báltico]. São frisões de bellos olhos azues e cabellos louros, muito pouco faladores, a ponto de só chegarem a abrir a bocca para dizerem coisas sensatas e verdadeiras. Por isto mesmo, é gente em quem se pode confiar”.

Já no contexto da Segunda Guerra, em 1940, uma edição do jornal O Imparcial dá uma breve ideia acerca da xenofobia da Era Vargas. O diretor desta publicação é J. S. Maciel Filho, que ficou notabilizado como redator dos discursos de Getúlio Vargas. A capa de O Imparcial de 18 de dezembro daquele ano estampa: “Uma revelação gravissima; Mais de duzentas propriedades onde não se fala portuguez”[8]. O alvo: os pomeranos e alemães do Espírito Santo.

Trecho da capa de 'O Imparcial' de 18 de dezembro de 1940

A curta nota – publicada contudo com destaque – informa que o Serviço Nacional de Recenseamento fora informado por um de seus agentes que, em uma “longa faixa do Estado do Espírito Santo” pelo qual ele estava encarregado, com cerca de 425 quilômetros, não havia “um só indivíduo” que falasse português. A área fora identificada pelo jornal: o distrito de Jequitibá, no município de Santa Leopoldina. Trata-se, justamente, do atual município de Santa Maria de Jetibá[9], anteriormente mencionado. Atualmente, o slogan da cidade é “O Município mais pomerano do Brasil”, com uma versão da frase escrita em pomerano.

Para realizar o censo, diz o jornal em tom de alerta, o agente teve de contratar intérpretes pomeranos e alemães. O jornal continua: “Segundo observação com autoridades censitárias naquelle Estado, tal é o alheiamento desse nucleo colonial ao meio brasileiro que os próprios decendentes dos colonos, nascidos aqui, tambem não falavam nem entendem a lingua portugueza”. E conclui: “D’agora em deante, segundo comunica o Serviço de Recenseamento, aquella região ficará incluida nas cogitações que o assumpto merece”.

As cidades “pomeranas”, registra a Revista de História da Biblioteca Nacional, eram em 2008 os maiores expoentes na agricultura do Espírito Santo, destacando-se pela produção de ovos – então a segunda maior do país[10]: “A cultura não só foi preservada, como vem sendo valorizada. Há grupos de dança folclórica e música tradicional[11]. Os rituais de casamento são bem característicos, com festividades que começam cerca de um mês antes da cerimônia. E desde 2005 o Proepo (Programa de Educação Escolar Pomerana) ensina pomerano a crianças e jovens de cinco municípios. Para os da zona rural, acostumados somente à língua ancestral, o reforço é em português”.

Foto de grupo folclórico pomerano no Espírito Santo, em maio de 1991. Foto: ospomeranos.com.br

Em meados do século XX, um grupo de famílias de agricultores pomeranos migrou internamente do Espírito Santo para Rondônia. A migração ocorreu no final da década de 1960, com mais problemas: ao tentar chegar no município de Espigão do Oeste, quase divisa com o Mato Grosso, depois de enfrentar muitas dificuldades no caminho, tiveram de enfrentar uma “corrupção endêmica” dos tempos da ditadura civil-militar.

Segundo um dos pioneiros da travessia, Martino Tesch, relatou a um meio de comunicação de Rondônia em 2014, além de terem sido obrigados por policiais a entregar todas as suas economias em dinheiro, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), então sob comando de interventores do regime ditatorial brasileiro, fez com que os agricultores perdessem grande parte de suas terras a partir de uma determinação fundiária. As terras de cerca de 200 famílias que cultivavam milho, feijão e arroz foram cortadas ao meio. Conforme relato do meio de comunicação local, News Rondônia[12], na tarde do dia 29 de abril de 1974 uma patrulha formada por 15 policiais invadiu acampamentos, espancando homens, mulheres e crianças, destruindo ranchos e quebrando utensílios domésticos, além de aprisionar diversos colonos.

Caminhoneiros enfrentavam atoleiros na BR-364. Foto: newsrondonia.com.br/Acervo de Martino Tesch

O conflito agrário, conta o periódico local, chegou a Brasília por meio de um deputado do MDB (o partido legalista da oposição), Jerônimo Santana, que denunciara na tribuna do Congresso Nacional e junto às autoridades a situação. O relato do periódico fala por si só:

Por determinação do presidente, um grupo de agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI) deslocava-se até Espigão para investigar e apresentar um relatório sobre os conflitos naquele distrito. Ouviram dezenas de pessoas e retornaram a Brasília, apresentando um relatório no qual fazia constar que ali residiam trabalhadores rurais e famílias perseguidas e taxadas de “agitadoras e comunistas” pelos governantes do Território.

O oficial que redigiu o relatório ao presidente diria: “São pacíficos, trabalhadores branquinhos, que nem o senhor”. Numa canetada só, Geisel exonerava o então governador do extinto Território, Theodorico Gahyva, e o executor do Incra, Sylvio Gonçalves Faria, apaziguando os ânimos na região.

Com recomendação expressa para tratar bem os agricultores de Espigão do Oeste, o presidente nomeava Humberto da Silva Guedes, em substituição a Gahyva. Desde então, os conflitos acabaram e mais tarde o governador Jorge Teixeira visitava frequentemente a região.

Ainda no século XIX, os primeiros pomeranos contaram, pelo menos na teoria, com a boa vontade das autoridades imperiais, pelas mesmas razões já amplamente documentadas aqui: eram brancos, europeus e majoritariamente agricultores. É o que demonstra, por exemplo, um editorial do jornal O Cruzeiro, publicação sediada no Rio de Janeiro e que durou apenas um ano. O jornal dá destaque aos pomeranos em sua edição de 28 de janeiro de 1878, sob o título “Colonisação Pomerana”[13], seguido dos dizeres Res non verba (em latim, “Fatos e não palavras”, pedindo ação imediata para a questão).

Chamando atenção para a importância de “novos braços” para a lavoura, o editorial argumenta, em tom de lembrete, que os europeus poderiam enriquecer a lavoura “pelos processos e machinas conhecidos na culta Europa e tão familiares aos seus agricultores”. Fomentar a boa imigração por meios diretos e indiretos, diz o texto, “é hoje uma necessidade imprescindivel para o progresso do paiz”. Em pelo menos uma coisa o editorial havia acertado: os pomeranos sempre foram historicamente vinculados à agricultura familiar.

O alerta sobre o risco de lançar mão de políticas migratórias insatisfatórias veio por meio da citação das palavras do ministro da Agricultura, citado pelo O Cruzeiro: “Se o colono destinado á vida agricola não encontrar á sua chegada ao paiz, na tutella do governo ou dos proprietarios e capitalistas um auxiliar intelligente que dirija seus primeiros passos, que o guie na escolha de uma cultura productiva, em vez de um homem feliz, membro util ao Estado, tornar-se-ha um ser inutil e ira augmentar a classe dos proletarios que dão crescido numero de descontentes tão prejudiciaes ao paiz”.

O jornal 'O Cruzeiro' dá destaque aos pomeranos em sua edição de 28 de janeiro de 1878, sob o título 'Colonisação Pomerana'

O editorial afirma que o ministro adotará medidas “promptas e adequadas a facilitar a vinda de immigrantes e seu consequente estabelecimento no paiz”, passando a “lembrar” algumas das medidas que o próprio jornal considera adequadas. Uma delas seria a de subvencionar a imigração dos “russos-allemans da seita protestante” que almejam vir ao país para se unir a parentes já estabelecidos no Rio Grande do Sul, onde – segundo o editorial – “gozam de um bem estar melhor do que aquelle que desfructavam na mãe-patria”.

Outra medida “não menos importante” é a de “auxiliar” – como o editorial chama as subvenções estatais – a imigração de “allemans da provincia Pomerania”, garantido-lhes passagem para que possam se estabelecer no Brasil. Sobre os pomeranos – que, como já destacamos, não eram alemães –, o editorial destaca: “A melhor e mais numerosa classe de imigrantes allemães que temos recebido nestes ultimos tempos são d’essa provincia prussiana”.

Após explicar como se dá a relação das autoridades brasileiras com as prussianas – sempre por meio de contratos “mais ou menos longos” –, o editorial ressalta que os pomeranos são “laboriosos colonos” e pede atenção para que as autoridades possam garantir, dentro do tempo estipulado nos contratos, os “favores que nossas leis outorgam aos colonos”. E compara: “É mister ter em vista que os agentes e governos da Australia, Nova-Zelandia, Canadá, etc., não sómente sabem conhecer d’essa opportunidade com grande sabedoria tirando d’ella o melhor partido possível para a causa que protegem”.

Pedindo que o cônsul brasileiro em Hamburgo tenha “os meios necessarios para auxiliar e promover a emigração d’esses laboriosos immigrantes em Fevereiro e Março”, o editorial afirma que o Tesouro brasileiro sediado em Londres deve disponibilizar os recursos no tempo certo. O ano de 1876, registra o editorial, registrou um aumento no número de imigrantes, com o Brasil sendo o principal destino de imigrantes alemães na América do Sul.

O editorial dá a fórmula: além da obrigação de o governo tutelar os imigrantes para que estes sejam guiados em seus primeiros passos, a “cultura lucrativa e mercado proximo são elementos essenciaes á prosperidade dos immigrantes agricultores”. Por isso, conclui, é preciso entregar a direção dos estabelecimentos coloniais a um “pessoal conhecedor de suas multiplas necessidades e capaz de encaminhal-os com prudencia, honestidade e intelligencia”.

Como a maior parte dos principais jornais à época, as angústias dos imigrantes ou suas reivindicações raramente eram ouvidas: a imprensa tratava sobretudo de negócios. Com a agricultura como setor-chave do Brasil Império, a discussão – mesmo que contendo eventualmente críticas às autoridades – era sobretudo sobre como atrair cada vez mais trabalhadores “laboriosos” e “morigerados” – para usar duas das mais comuns expressões da época –, europeus do centro e do norte do continente, agricultores e preferencialmente em família.

Notas:

1 Ver, por exemplo, http://www.labeurb.unicamp.br/elb/europeias/pomeranos_brasil.htm e http://www.pmsmj.es.gov.br/pg/24522/o-municipio-154-anos-da-imigracao/, parecendo que a data mais correta para a chegada dos pomeranos é de fato na segunda metade da década de 1850.

2 Segundo matéria de um jornal local, 15 mil dos 40 mil habitantes do município de Espigão do Oeste, em Rondônia, são descendentes de pomeranos, constituindo a maior comunidade pomerana na Amazônia. A cidade conta com um programa de rádio em pomerano e o apoio de um vereador descendente dos pomeranos. Vide http://www.newsrondonia.com.br/noticias/maior+colonia+de+pomeranos+da+amazonia+vive+em+rondonia/46451

3 Segundo um pesquisador pomerano da UFES, vide http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2014/07/noticias/cidades/1492216-a-luta-para-manter-viva-a-tradicao.html

4 Em registro na RHBN em setembro de 2008, disponível em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/em-dia/a-pomerania-e-aqui

5 Id.

6 Vide http://www.pmsmj.es.gov.br/pg/24522/o-municipio-154-anos-da-imigracao/

7 Kapeller, Ludwig. Vamos visitar a Alemanha? Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=090972_08&pagfis=15021&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

8 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=107670_04&pagfis=4379&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

9 Vide http://www.pmsmj.es.gov.br/pg/24517/o-municipio-historia/

10 RHBN, op. cit.

11 Ver, por exemplo, http://www.ospomeranos.com.br

12 Acesse a matéria em http://www.newsrondonia.com.br/noticias/maior+colonia+de+pomeranos+da+amazonia+vive+em+rondonia/46451

13 Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=238562&pagfis=238&pesq=&url=http://memoria.bn.br/docreader#

*Gustavo Barreto (@gustavobarreto_) é jornalista. Acesse também pelo Facebook (www.facebook.com/gustavo.barreto.rio)

Fonte: Dois séculos de imigração no Brasil pela imprensa

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